Blog criado pelo autor e diretor Enéas Lour para o acompanhamento do processo de criação da peça teatral "SERAFIM" pelos integrantes do Grupo de Teatro do Clube Curitibano. Janeiro / 2012.
No TEMPO em
que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz
e ninguém estava morto.
Na casa
antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria
de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No TEMPO em
que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a
grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser
inteligente para entre a família,
E de não ter
as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a
ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a
olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que
fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de
coração e parentesco.
O que fui de
serões de meia-província,
O que fui de
amarem-me e eu ser menino,
O que fui —
ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que
distância!...
(Nem o
acho...)
O tempo em
que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou
hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo
grelado nas paredes...
O que eu sou
hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou
hoje é terem vendido a casa,
É terem
morrido todos,
É estar eu
sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em
que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu
amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo
físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma
viagem metafísica e carnal,
Com uma
dualidade de eu para mim...
Comer o
passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo
outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta
com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador
com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias
velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em
que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu
coração!
Não penses!
Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus,
meu Deus, meu Deus!
Hoje já não
faço anos.
Duro.
Somam-se-me
dias.
Serei velho
quando o for.
Mais nada.
Raiva de não
ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em
que festejavam o dia dos meus anos!...
15/10/1929
Os versos
acima, declamados pelo ator PAULO AUTRAN, forma escritos pelo poeta Fernando Pessoa com o heterônimo de Álvaro de Campos, foram extraídos do livro
" - Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - RJ 1972, pág. 379.
Estamos trabalhando um texto, uma
peça, que tem como protagonista um homem velho. Um poeta que chegou um dia,
depois de muito caminhar pelo tempo de sua vida, numa praia no fim de seu
caminho. Com ele vieram suas pegadas desde os tempos de menino, atrás dele,
marcadas uma a uma. E cada pegada dessas, deixadas na areia do tempo, é uma
cicatriz. Ali, em cada marca, em cada quadradinho de espelho (Spécula) da chuva
de suas lembranças, estão várias das personagens que compuseram a música de sua
vida. Ali estão o batom da primeira prostituta - Joana e/ou Dolores, seu nome
de guerra, que ensinou minúcias tristes do amor ao menino. Ali estão os
cobradores, com suas regras deste nosso mundo real tão inóspito às almas mais
delicadas, mais sensíveis. Ali está a cidade, há um tempo mãe e também madrasta
que ensina a visão do outro. Ali estão reunidas figuras que ensinaram ao velho
Serafim os muitos caminhos do mundo, suas escolhas e preço de cada uma de suas opções.
São retratos dele recortados de sua memória. Seus pecados, suas glórias. Seus
passos passados por milhas e trilhas, por sertões e capitais, águias e urubus,
mandingas e mandacarus, em busca da sua palavra perdida. O encontro consigo
mesmo em oposto (Mifares), juiz mais crítico, advogado do diabo, que lhe impõem
- como todos nós nos impomos - consciência de si mesmo. Sair de uma
"ilha" em busca do outro, impelido pelo amor, que coisa mais difícil!
Tarefa dura. Mifares o faz sair da casca. Ele mesmo se provoca ao atirar-se ao
mar e ir ao encontro do outro, pois "aprender sobre si consigo mesmo é
impossível! você só aprende com os outros, Serafim!". E, por fim, vem a
Lua, (Selene) a madrinha de nossos sonhos beijar-lhe a testa sombria em rugas.
Dar-lhe o beijo do descanso final e irrecorrível, tão merecido por todos nós, a
morte. Diz-lhe, a madrinha, tendo o velho Serafim ao seu colo: Vem! ...Vem
meu filho! Vem até aqui, criança! E descansa em meu colo tua cabeça. Mas, traz
contigo os teus sonhos, menino, não esqueça! Traz teus sonhos que contigo
viajaram sempre, não os deixe nunca, não os perca! Eles, os teus sonhos, são de
tua alma o alimento! Não os perca nunca, em nenhum momento! E é isso o que
faz o velho quando lhe "entrega sua palavra - a poesia - e segue seu novo
caminho” daqui para outro planeta".